Neve em São Paulo em 1918? A dúvida atravessa gerações e reaparece sempre que o inverno chega com força na capital paulista. Um dos registros mais intrigantes dessa suposta nevasca está no caderno de visitas da garçonnière mantida pelo escritor Oswald de Andrade, na Rua Líbero Badaró, onde consta a menção de que teria nevado em 25 de junho de 1918. O episódio causou comoção na sociedade paulistana, que enfrentava um frio raro e intenso.
Mas será que a neve realmente caiu sobre São Paulo?
Nenhum registro oficial de neve em São Paulo
Desde o início das medições meteorológicas sistemáticas, realizadas pelo Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP) a partir de 1910, não há nenhum registro oficial de neve na cidade de São Paulo. O que ocorreu naquele 25 de junho de 1918 — assim como entre os dias 24 e 28 de julho de 1925 — foi uma geada forte e incomum, causada por uma massa de ar extremamente fria e céu completamente limpo.
O meteorologista Mario Festa, do IAG/USP, explica que a geada é frequentemente confundida com neve, já que ambos fenômenos envolvem cristais de gelo. Mas há uma diferença fundamental: a geada não “cai” do céu, ela se forma diretamente sobre superfícies frias. Já a neve é uma forma de precipitação atmosférica — como a chuva —, que exige a presença de nuvens.
Naquele 25 de junho, os registros meteorológicos do IAG mostraram nebulosidade zero ao longo de todo o dia, condição incompatível com a formação de neve. A temperatura, no entanto, foi de impressionantes -1,2 °C, um dos dias mais frios já registrados em São Paulo. O choque desse frio atípico, combinado à formação de cristais de gelo sobre o solo, provavelmente deu origem à ilusão de uma nevasca, que acabou entrando para o folclore urbano.
Por que não neva em São Paulo?
Segundo a meteorologista e divulgadora científica Samantha Martins, do blog Meteorópole, as condições geográficas de São Paulo não favorecem a formação de neve. A cidade está localizada em um planalto de cerca de 800 metros de altitude, o que não é suficiente para que ocorram precipitações de neve. Além disso, a latitude tropical, distante do Polo Sul, impede que massas de ar polar extremamente intensas atinjam a região com força suficiente para produzir neve real.
O frio que São Paulo já experimentou em algumas ocasiões é severo o bastante para provocar geadas e até mesmo recordes de temperatura negativa. Além do episódio de 1918, o termômetro da cidade voltou a marcar -1,2 °C em outras três datas: 6 e 12 de julho de 1942, e 2 de agosto de 1955. Essas são as menores temperaturas registradas na capital até hoje.
E quanto ao granizo?
Outro fenômeno gelado que causa confusão é o granizo, que, ao contrário da neve, é relativamente comum em São Paulo. O granizo se forma em nuvens cumulonimbus, típicas de tempestades severas, nas quais as partículas de água congelam em altitudes elevadas. Essas bolas de gelo, que podem atingir até 10 centímetros de diâmetro, caem rapidamente ao solo antes de derreter, quando a temperatura está mais baixa.
A diferença está no formato e no processo de formação: enquanto a neve é composta por pequenos cristais de gelo, o granizo são aglomerados de gelo compactado, muitas vezes grandes e danosos. É comum que em dias frios com tempestade haja chuvas de granizo, o que também pode confundir os moradores menos familiarizados com os fenômenos meteorológicos.
Breve história da meteorologia paulistana
O IAG/USP é o instituto mais antigo do Brasil a realizar medições meteorológicas contínuas. Fundado a partir da Comissão Geográfica e Geológica, criada em 1886, o instituto começou seus registros sistemáticos em 1910, inicialmente na Avenida Paulista. Na época, a estação meteorológica ficava ao lado do palacete do engenheiro civil José Nunes Belfort de Mattos. Com o aumento do tráfego de bondes e as vibrações interferindo nos instrumentos, a estação foi transferida em 1933 para a região da Água Funda, onde permanece até hoje.
Antes mesmo do IAG, São Paulo já contava com registros esporádicos, como os feitos pelos astrônomos Bento Sanches Dorta e Francisco de Oliveira Barbosa em 1788, e pelo naturalista inglês William John Burchell em 1827. Ao longo do século XIX, outros nomes como o brigadeiro José Joaquim Machado de Oliveira, o engenheiro inglês Henry Batson Joyner e o frade Germano de Annecy também contribuíram com observações meteorológicas.
No final do século XIX, a cidade possuía dois observatórios particulares, pertencentes ao professor José Feliciano de Oliveira e ao general Couto de Magalhães, ampliando o conhecimento sobre o clima paulistano.
Então, nevou em São Paulo? A ciência diz que não. Mas a história da cidade, com suas memórias e registros de geadas impressionantes, continua a alimentar o imaginário popular.