Crise histórica de abastecimento agrava cenário social e econômico no país vizinho
Buenos Aires, Mar del Plata, La Plata, Rosario, Mendoza, Córdoba — A Argentina enfrenta neste início de julho de 2025 uma das piores emergências energéticas de sua história recente, impulsionada por uma onda de frio polar extrema que mergulhou grande parte do território em temperaturas negativas recordes. O colapso foi desencadeado por um pico histórico no consumo de gás natural, essencial para o aquecimento de residências e estabelecimentos durante o rigoroso inverno no Cone Sul.
A madrugada de quarta-feira registrou os índices mais baixos do ano, com sensação térmica de até -10 °C em bairros periféricos da cidade litorânea de Mar del Plata, onde mais de 20 bairros ficaram sem fornecimento de gás. Sem calefação e sem água quente, os moradores recorreram a soluções alternativas, como chuveiros e estufas elétricas, o que sobrecarregou ainda mais a rede elétrica, provocando apagões em diversos bairros.
As ruas ficaram vazias, com escolas fechadas, transporte público interrompido e atividades comerciais suspensas. A empresa Camuzzi, distribuidora responsável pela região, reportou queda de pressão nos gasodutos, exigindo o desligamento emergencial da rede. A retomada, segundo a companhia, será feita gradualmente, com mais de 150 técnicos atuando em campo, priorizando hospitais, casas de repouso e postos de saúde.
Em tentativa de conter o colapso, a prefeitura decretou o fechamento de todas as atividades noturnas. Restaurantes, academias, shoppings e postos de GNC interromperam o atendimento. O objetivo é preservar o pouco gás disponível para uso doméstico, diante de uma demanda que, segundo a Associação de Gás Natural (AGN), superou 100 milhões de metros cúbicos diários — algo nunca antes registrado na história energética do país.
Enquanto La Plata desativou cerca de 80% das estações de gás, em Rosario, Santa Fe, Tucumán e Salta o fornecimento segue com alerta máximo. Nas províncias de Córdoba, Neuquén, San Juan, La Pampa, Jujuy e Río Negro, a situação é igualmente crítica. Indústrias e postos de combustível, com contratos do tipo “interrumpible”, foram desconectados automaticamente por orientação da Secretaria de Energia.
Além do aumento drástico na demanda, a oferta também sofreu impactos decisivos. Houve redução da produção nos campos de shale gas em Vaca Muerta, principal reserva energética da Argentina, devido a falhas técnicas nas unidades de La Calera e Aguada Pichana Este, que diminuíram a injeção diária em cerca de 7 milhões de metros cúbicos.
A usina nuclear Atucha II segue fora de operação, agravando a fragilidade do sistema elétrico. Para suprir parte da demanda, o governo recorreu à queima de combustíveis líquidos — como gás óleo e fuel oil — nas usinas termelétricas, além de reforçar a importação de eletricidade do Brasil, Uruguai e Paraguai.
A Secretaria de Energia da Argentina declarou estado de emergência e ativou o Comitê Executivo de Emergência, reunindo representantes do Enargas, Cammesa e empresas distribuidoras. Em menos de 24 horas, foram realizadas três reuniões extraordinárias, que determinaram cortes obrigatórios para grandes consumidores e suspensão temporária das exportações de gás ao Chile. O país vizinho ativou medidas de contingência e passou a usar seus estoques estratégicos no terminal de Quintero.
O governo de Javier Milei atribui a crise às administrações anteriores, denunciando décadas de negligência com a infraestrutura energética, congelamento de tarifas e ausência de planejamento estratégico. A falta de investimentos ficou evidente diante do estresse imposto por temperaturas extremas que superaram médias históricas do inverno.
O setor industrial sente fortemente os efeitos. Fábricas com contratos firmes enfrentam paralisações forçadas, recorrendo a combustíveis alternativos mais caros, como o diesel, para manter parte das operações. O transporte de cargas e passageiros também registra prejuízos, com empresas suspendendo serviços ou operando em regime de emergência.
Técnicos alertam que a normalização completa do sistema de gás poderá levar dias ou semanas, mesmo após o restabelecimento da pressão nos dutos. O processo é delicado, feito residência por residência, e depende da disponibilidade de equipes de campo, sob temperaturas hostis e alto risco operacional.
Enquanto isso, milhares de famílias argentinas seguem enfrentando o frio rigoroso com aquecedores desligados, janelas vedadas e esperança de reconexão. O que começou como um fenômeno climático tornou-se uma crise humanitária que desafia os limites da infraestrutura energética da Argentina no auge do inverno de 2025.